domingo, 24 de janeiro de 2010

Sinto, apesar da distância.

A morte é inevitável, entretanto a forma como ela chega, faz a vida, em meio a sua feiúra de misérias, futilidades, monstros e guerras criadas pelos homens, transformar-se em algo no qual uma palavra de descrição corre o risco de se tornar insulto. Sem palavras, só os cinco sentidos, a vontade de tê-la em mãos (para sempre) mesmo sabendo da impossibilidade : é água que escorre pelos dedos, contagem dos grãos de areia da praia, as ganas e as lutas pela vida – os dias, não são apenas dias, são milagres.

Nasceu pelas mãos do obstetra, foi lavado pelas enfermeiras e aconchegou-se nos braços da mãe. Aprendeu a dar os primeiros passos (caindo e levantando), descobriu as paixões pelo futebol, risos frouxos entre os amigos, namoricos de criança os quais, mais tarde, viraram motivos de risos diante dos exageros da época. Ouviu “nãos” e “sins”, riu das sortes e dos azares, mas no fim debochou de tudo, já que tudo aquilo é era apenas uma fase ruim. Não gostava de alface, preferia tomate. Nasceu carregando o feto da morte que, por fim, viria a crescer e consumi-lo, haveria de vestir luto e, o luto o vestiria (ao entardecer ou amanhecer dependeria). Tal qual todos os outros, portanto, assim como eles, havia algo que o singularizava: os formatos. Não somente dos dedos, boca, andar e seu falar, era tudo – até seus erros, principalmente a sua percepção, fragilidades e fortalezas. Não se esquecendo dos rumos, batidas do coração que ficam subentendidos.
Corria despreocupado nos espaços, ultrapassava escadarias com a maior facilidade, até que se segurou numa barra de sustentação, tentando uma artimanha para vencer a corrida, bateu a cabeça no concreto duro, abrindo um talho. Na inconsciência foi levado ao hospital, nos raios-X apareceu muito mais do que cortes, um tumor – essa palavra que se é familiar de novelas e seriados médicos, tão vaga, distante que, quando ela não é ficcional, parece surreal. Se não fosse por ela, não teria sobrevivido tanto tempo. Foi apenas o início: as primeiras seções de quimioterapia, batalhas diárias. Os medos de não acordar os olhos no dia seguinte, dele e de quem lhe amava, sensações a flor da pele, alguma força de outro mundo tirada de algum lugar, toda a dor que o ensinou a gritar e a chorar, só mais tarde entender. Até aparentemente passar; o primeiro passou.
O segundo não, era de medula. Ficou com dificuldade para caminhar, já não podia mais apostar corrida, mas se fez presente com os olhos, apaixonou-se pelo teatro e medicina (então descobriu que queria ser médico). Indo e voltando dos quatros de paredes brancas, dizendo que o nunca seria tarde para realizar seus sonhos, pois venceria. Então por quais motivos perderia seu tempo com lamentações, preocupações do dia seguinte, se o que importa é o hoje? A rosa vermelha virá flor seca, seja no vaso de cristal ou na lápide. Tudo era bom demais, sonhar era bom demais. Duvidar era impossível. Queixar-se um insulto, até das vertigens. Era guerreiro, anjo de asas as quais não voavam.
Por muito tempo suportou, mesmo quando via sua face magra (parecida com uma caveira), até o dia cujo corpo foi mais forte que a alma, a fé. Então seus parentes chamaram a ambulância, não fora um acidente. No fundo de toda a esperança: o pessimismo. Nos lençóis de algodão, no meio de todos aqueles que amava, travou a última batalha. Dela só um buraco vazio, ele fora apostar corrida com as estrelas, virou anjo de asas transparentes que o levavam a qualquer lugar – como sempre desejou – o faziam fugir da prisão e da dor.
A quem diga que ele foi derrotado, ao contrário: saiu vencedor. Porque reclamar é fácil, inventar uma desculpa também, principalmente diante da conveniência, passar os anos na inércia, nos marasmos do conforto e da alienação mais ainda, já que o tempo é rápido, sem reprises, pipocas de ontem. Ele só tinha 17. Eu tenho 18, tantas aspirações, anseios e desejos quanto ele, eu permaneci; tive a sorte de ter mais um dia, mesmo que vestindo luto.
Há muitas outras histórias tristes como essa, quem sabe mais deprimentes ainda. Existem muitos que nem os descansos da morte têm, ficam como vegetais. Outros morrem em acidentes de carro, terremotos, AIDS, fome, subjugados por outras substâncias; basta olhar os lados, as diagonais, o norte o sul. Desde sempre a vida, na sua preciosidade, foi justa? Jamais. Ao acontecer uma história com tamanha proximidade dos nossos olhos, adquiri-se outra percepção. Adiciona-se mais um formato. Ao menos estar vivo dá mais uma chance de viver, como ele fez., por mais difícil que aparente.

Minueto e rondó
Amanhecia. Não havia ninguém na rua.
Não, foi assim: debruçado no terraço, ele olhou primeiro para cima - e viu que o azul do céu quase preto aqui e ali se fazia cinza cada vez mais claro em direção ao horizonte, se houvesse horizonte, em todo caso atrás dos últimos edifícios que eram, digamos, um sucedâneo de horizontes. E amanhecia, concluiu então. Debruçado no terraço, ele olhou segundo para baixo - e viu que na longa rua não havia rumores nem carros nem pessoas, só os sete viadutos também desertos. Não havia ninguém na rua, concluiu ainda.
Debruçado no terraço, amanhecia.
Ao mesmo tempo, em seguida, um de-dentro pensou: e se alguém realmente e finalmente apertou o botão? e se aquele cinza-claro no sucedâneo de horizonte for o clarão metálico? e se eu estava dormindo quando tudo aconteceu? e se fiquei sozinho na cidade, no país, no continente, no planeta? Sabia que não. E um outro de-dentro pensava também, se sobrepujando mais claro, quase organizado, não totalmente porque para dizer a verdade não era um pensamento nem uma emoção, mas algo assim como o cinza-claro brotando natural por sobre o horizonte, se houvesse horizonte, ou como o vento fresco batendo nas cortinas, ou ainda como se uma onda nascesse daquele imóvel mar ativo, ali onde começa a luz, onde começa o vento, onde começa a onda, desse lugar qualquer que eu não sei, nem você, nem ele sabia agora: brotou qualquer coisa como - não quero ser piegas, mas talvez não tenha outro jeito - uma luz, um vento, uma onda. Exatamente. Uma onda calma ou arquejante, um vento minuano ou siroco, uma luz mortiça ou luminosa, repito que brotou, repetiu incrédulo.
Ele teve certeza. Ou claras suspeitas. Que talvez não houvesse lesões, no sentido de perder, mas acúmulos no sentido de somar? Sim sim. Transmutações e não perdas irreparáveis, alices-davis que o tempo levara, mas substituições oportunas, como se fossem mágicas, tão a seu tempo viriam, alices-davis que um tempo novo traria? Não era uma sensação química. Ele não tinha a boca seca nem as pupilas dilatadas. Estava exatamente como era, sem aditivos.
Vou-me embora, pensou: a estrada é longa.
Tocou então o próprio corpo. Uma glória interior, foi assim que batizou solene, infinitamente delicado, quando ela brotou. Arpejo, foi o que lhe ocorreu, ridículo complacente, cor-nu-có-pia soletrou, quero um instante assim barroco, desejou. Mas vestido de amarelo como estava, visto de costas contra o céu, supondo que uma câmera cinematográfica colocada aqui na porta desta sala o enquadrasse agora pareceria quase bizantino, ouro sobre azul, magreza mística, que tinha sua cultura, sua leitura. E culpa alguma. Gótico, gemeu torcido, unindo as duas mãos no sexo, no ventre, no peito, no rosto e elevando-as acima da cabeça.
O sol estava nascendo.
Poderia talvez ser internado no próximo minuto, mas era realmente um pouco assim como se ouvisse as notas iniciais de A sagração da primavera. O gosto mofado de morangos tinha desaparecido. Como uma dor de cabeça, de repente. Tinha cinco anos mais que trinta. Estava na metade, supondo que setenta fosse sua conta. Mas era um homem recém-nascido quando voltou-se devagar, num giro de cento e oitenta graus sobre os próprios pés, para deslizar as costas pela sacada até ficar de joelhos sobre os ladrilhos escuros, as mãos postas sobre o sexo.
Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos.
Achava que sim.
Que sim.
Sim.”

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

cena fragmentada em um cotidiano de ventania


Aquilo não era mais do que uma cena fragmentada em um cotidiano de ventania. Uma borboleta negra (ou mariposa em plena luz do dia?) passou, tocando a unha colorida, antenas com as pálpebras e, logo depois, seguindo sua corrida contra as correntes do ar, sem deixar rastros, em busca de opções. Eu permaneci ali, pensando em itens avulsos, olhando as unhas vermelho-pimenta, pois, às vezes, raciocinar em linhas retas ou tortas doía da mesma forma e voar contra a corrente exigia sacrifícios. Então fiquei sentada, enquanto o vento emaranhava os cabelos e, todos os meus desejos, vontades e possibilidades exigiam de mim atitudes mais concretas, quem sabe até um pouco mais de humanidade.
Será que minha vontade era tão grande a ponto de conseguir alguma coisa, não avulsa, com motivos, sem data de fabricação ou validação, na medida da loucura lúcida, para vencer minhas batalhas - onde o maior inimigo sou eu? Essa resposta tem muitas possibilidades, uma certeza: alguém vai sair ferido. Assim, prático.
Deveria, mas, por coisas que a minha vã filosofia desconhece ou egocentrismo a flor da pele, alguma parte escondida faz eu achar que dá sempre para salvar até o pior dos enforcados, fazer uma história diferente, só para fugir do usual. A perna balança, os dedos entrecruzam-se em notas sol de quarto decrescente aumentando a impaciência,dilatando as feridas abertas, tornando cinza chumbo os flash-blacks, de sépia, da retina. O ritmo do corpo misturou-se com a campainha do telefone, deixei uns segundos o som horrível entrar pelos tímpanos, o sangue subir a cabeça. A cena fragmentada, agora, tinha início, meio e final.
- Fala.
Não falei, botei os pulmões para fora. Até demais. O batom se fora, com a saliva. Naquele dia preferi o escracho à sutileza.
Melhor isso que a indiferença, olhos nos olhos, batalhas corpo a corpo, mortos e feridos. Éramos apenas soldados que deixaram de lutar, vencidos pelo cansaço, velhas fórmulas, embora seja impossível mascarar as verdadeiras essências – não importa os perfumes usados. Sentimos os pesos dos sete pecados os quais carregávamos de arrasto, dos tatos ásperos, distâncias dos nossos caminhos paralelos. E diante disso: calamo-nos, aparecendo como demônios nos pensamentos alheios.
Uma lágrima escorreu, tornando-se gota d’água benta. Demônios exorcizados, nenhum morto, contudo vários feridos. Final de guerra (sem mortes), uma borboleta que fugiu, assuntos acabados, outros recém postos em evidência. Sendo assim, não tive tempo de dizer adeus (nunca há), ele desligou antes, resultado de uma epifania? Não. Mais um romance de horas, desejos de minutos, luxúrias de segundos, ao menos tudo pleno e intenso.
Ao menos uma cena digna de novela mexicana, encaixada em um cotidiano de ventania.


“Porque naquelas casas, se o acolhiam, se lhe davam comida e dormida, era como cumprindo uma obrigação fastidiosa. Os donos da casa evitavam se aproximar dele, e o deixavam na sua sujeira, nunca tinham uma palavra boa para ele. (...) Mas desta vez estava sendo diferente. Desta vez não o deixaram na cozinha com seus molambos, não o puseram a dormir no quintal. Deram-lhe roupa, um quarto, comida na sala de jantar. (...) Então os lábios de Sem-Pernas se descerraram e ele soluçou, chorou muito encostado ao peito de sua mãe. E enquanto a abraçava e se deixava beijar, soluçava porque a ia abandonar e, mais que isso, a ia roubar. E ela talvez nunca soubesse que o Sem-Pernas sentia que ia furtar a si próprio também.” Jorge Amado, Capitães da Areia.

amei, cacete.




quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Areais do concreto

Olhava o nada, o céu das quatro horas, teoricamente menos propício às temperaturas fortes, deixava todas as sensações mais acentuadas, mas não as sentia, imune ao caos. Todas as vozes pareciam longe e híbridas (misturadas umas com as outras) e, todos os atos óbvios – como um castelo de cartas que desaba. Tão óbvios assim?
- Pegadas na areia? – perguntou o homem meio doido e encardido (aquele corpo já não via água fazia algum tempo), mostrando um cartão o qual tinha essa respectiva história. Arregalou os olhos, saindo do seu buraco negro:
- Não, obrigado.
O corpo encardido foi interrogar mais alguns, saindo da sua vista, desviando de quem não fazia parte das suas escolhas aleatórias. O observador sorriu de canto de boca. Agora já não era questão de poesia, muito menos metáfora, e sim da realidade – outra história que se repetia (mais um cavaleiro da chuva?) na insônia da noite anterior? Tudo conspirava para isso, mas era muito mais. Questões indecifráveis de fé. Levou os dedos levemente até a boca, demonstrava uma surpresa contida, os olhos brilhavam, escondidos pelas lentes escuras, desabou num suspiro de esperanças, pois era disso que precisava: um pouco de desconhecido, sua gênesis, seu êxodo, já que no concreto não se deixam pegadas, só resto de sombras. Sim ou não? Dúvida. Céu ou purgatório sobre sua cabeça? Areal ou mar de concreto? Isso era inegável: mar de concreto, em tempos de seca.
A garrafa de água caiu aberta, dando de beber ao asfalto, pingos voaram para todos os lados, molhando pés, insuficientes para acalmar os ânimos, porque evaporavam antes de solucionar os problemas dos corações alheios. Eles acabaram gerando algumas reclamações dos insensíveis e a indiferença dos distantes, mas nele só trouxeram indignação e mais dúvida.
- Tá tudo certo?
Queria dizer que não; contudo, como qualquer ser humano, o instinto de negação das fraquezas gritou e, na falta de criatividade para desculpas aceitáveis, veio uma resposta:
- Cansaço.
- Todo mundo tá assim, deve ser esse calor infernal. Quer um pouco do sorvete?
Recusou a baba gordurosa quente, extremamente decadente. A sensação de fraco, o resto em câmera lenta, sorvete derretido e sua crença em si mesmo colocada à prova, isso não era Gênesis ou Êxodo, era o Apocalipse, talvez um conto da Clarice Linspector se materializando nos arcanos do destino. Mais pensamentos dúbios, visões transparentes do presente e imaginações das linhas do futuro (inúteis) nas linhas dos areais de concreto.
- Tem certeza? Esse chocolate tá perfeito. Relaxa, fica tranqüilo. Vai dar tudo certo.
- Não, não. To mesmo é com vontade de tomar um café. – não confessou que também um cigarro, vodca com sprite e gelo seria ótimo, mas teve medo das reações.
Ouviu aquelas palavras a semana inteira, se bem que não há como não repetir palavras. Repetir. Lembrou-se dos velhos trechos: “se tua fé não alcanças e chegas a duvidar, não enxergas a verdade? Esqueceste. Não é a toa que caminhas por este caos. A primeira guerra passou, a segunda guerra passou, mas a terceira já foi escrita...”, “Não tentaste qualquer viagem.Não possuis casa, navio, terra, mas tens um cão. Algumas palavras duras,em voz mansa, te golpearam. Nunca, nunca curam. A injustiça não se resolve.À sombra do mundo errado, murmuras te um protesto tímido, mas virão outros”, “O milagre não é dar vida ao corpo extinto,ou luz ao cego,ou eloqüência ao mudo... Nem mudar água pura em vinho tinto... Milagre é acreditarem nisso tudo!”
- Loucura! Tomar café nesse calor.
- Pior é comer um cachorro quente da carrocinha. E vícios são vícios, é difícil negá-los.
- Certas coisas não se explicam.
- Felizes os que creem e não veem.
- Tu tá muito estressado.
Repetir, outra vez.
Quem sabe outra só para ter certeza da descrença. Será? Vacilou. A areia do concreto era dura, seguiu os demais rumo ao ônibus, deixando suas pegadas de sombra no concreto, não as seguiram, mas qual a importância? Tinha asas, embora não as visse. Eram de água, mudavam de cor constantemente, escorriam pelo ar, na hora do voo. Muito realismo fantástico, na sua fé.
Sentou no banco duro, sol sobre o rosto. Colocou a cabeça na janela, olhando a paisagem de concreto virando água de areia, murmurou palavras inalteradas e fingiu dormir. Passados 40 minutos, desceu do ônibus, seguiu o caminho até em casa. Chegando lá, tirou os tênis, mexeu com a pedra do isqueiro (como se fosse ascender um Black imaginário). Deu-se a combustão do gás butano, enfim, a água ferveu. Passou um café muito forte, colorido de preto, tomou um gole. Um fim de tarde amargo.
Esticou o braço, umas gotas de adoçante despejou na xícara. Tão amargo assim?