sábado, 27 de fevereiro de 2010

Um só pneu

Alguma substância, que me fazia ficar de olhos abertos, por alguns segundos teve seu efeito questionado, na noite fria de nuvens sujas, provavelmente em alguma Terça - Feira do mês de Agosto. Eu observava dentro do carro, prestando atenção nas luzes tangerina dos postes, enquanto bocejava e jogava no vidro embasado Jogo da Velha, deixando de ser invicta pelas mãos do meu maior adversário. Passei o dedo indicador, disposta a apagar tudo, tornando visível o lugar por onde eu passava.
Naquela Avenida onde só o invisível caminha e, o carro trafega, eu enxerguei, com direito a luz do poste em foco, um homem escorado em uma roda de bicicleta. Não. Não era um quadro de Duchamp humanizado. Ele olhava o nada, na maior das imaginações, quem sabe, algumas sombras dançantes. Não. Não era Dom Quixote vendo moinhos de ventos sombrios. Não. Não era a morte, nem a vida esperando-me na linha reta do asfalto, anjo ou demônio. Era homem e, esse fato, perturbou-me.
Um arrepio passou pela espinha, coluna dorsal, lombar, vértebras, carnes e nervos (tudo junto ao mesmo tempo), ele arregalou meus olhos (contraindo as pupilas) , logo desaparecendo, assim como o moço do pneu. Alguns minutos. Suspiro, lacrimejo e, pelos fins inevitáveis, começo a descer o poço, com paredes limadas, das possibilidades . Comento como a noite está fria, nenhuma alma viva em qualquer lugar (o de sempre). Preencho com saliva e palavras aquele recinto andante onde o silêncio agonia-me, até por os pés na laje da minha casa, indo cada vez mais fundo no poço das pedras limadas. Ia abrindo portas, ultrapassando corredores, dedos nas paredes pasteis, até o ver o semblante dela.
- Mãe! Vi a situação mais bizarra da minha vida, um homem, no meio do nada, escorado num pneu de bicicleta. Do nada, sem motivo algum. Acho que ele estava esperando algum ônibus, porque “trabalho” não era, não vi vela, galinha... Nem estava drogado, tenho certeza, sem fumaça, cutucos incandescentes, nada! Só o pneu.
- Inusitado, quase absurdo. Como ele era?
- Não sei. Não reparei.
- Vai ver vai fazer um monociclo.
- Quê?
- Aquele negócio de circo.
- Para se apresentar no El Grande Circo Español?
- Nein! No Solei. – e a gargalhada atravessou a sua garganta.
A conversa encerrou-se, nem começou na realidade; tornando-se uma cena de ficção em algum lugar perdido do cérebro. A verdade: fiquei estático, demonstrando cansaço, a cara de vilão canalha de olhos caídos, que me atribuíam. Joguei a bolsa aos pés, casacos, cachecol para dar espaço a toalha de banho no corpo. Foi rápido e insuficiente, pois minhas formas não me distraíram e, só por algum tempo, a água quente preencheu o espaço. Foi-se embora no, com o sentido horário do fechar da torneira, deixando o vapor e toalhas macias (cujo poder de absorção tragou as últimas gotas). Olhei o espelho, passei as mãos por ele, desembaçando-o. Mostrei minha arcada dentária - conferindo se todos os dentes estavam lá – alisei meus cabelos e arranquei alguns (sinais de que estava ansioso). Então, por um estralo, impulso elétrico de quem se lembra de algo importante adormecido pelo tempo, sai caminhando a passos rápidos ( a fim de não dar na vista a necessidade – diferente, mas parecida e sem abstinência de quem se entorpece com químicos orgânicos) compulsiva. Até olhar os quatro cantos da garagem e focar, num canto esquecido, a velha bicicleta cor-de-cáqui invadida pelas teias de aranha (carinhosas moradas ou túmulos de artrópodes). Tudo no seu lugar, pensei. A borracha gasta, os pneus, os aros enferrujafos e o banco de espuma dura comido pelas traças, todo esse conjunto já me foi útil. Todo o conjunto, porém não só o pneu, o qual sozinho não parecia ter serventia.
Sonolento ou desiludido fui ao quarto deitar a cabeça em travesseiro baixo, vislumbrei porta-retratos nos corredores. Eles mostravam uma criança esperançosa, ainda comedora de terra e sonhadora ganhando seu primeiro mundo – o quintal – com seu mais novo brinquedo: a bicicleta, lembraram os tempos simples onde aquilo lhe bastava. Encontrei minha direção ao encontrar o lugar que me propus chegar: o quarto, quase um santuário, contudo, ao invés de deitar a cabeça no travesseiro, atire-me como um peso morto. Fiquei lá: morto, se não fosse pela respiração decrescente, olhos fechados povoados de sonhos.
“Eu Vestia amarelo e laranja fluorescentes, uma bermudinha de estampa psicodélica. Isso seria o cúmulo do cafona ridículo, YSL reviraria-se no túmulo, se não tivesse novamente cinco anos de idade, um quintal esmeralda de 4x4 (grande mundo novo, na época) e tivesse como companhia uma bicicleta cor-de-cáqui. Um dia ensolarado, em uma primavera há muito tempo perdida, só agora revivida, em mais uma cena de ventania. Caçava borboletas em um laço de descompasso, até a hora na qual isso me cansou, então peguei meu novo veículo sai no 4x4 a fora, mais um Napoleão. Até cair, como todos os grandes imperadores, num descuido de atenção. Acabei entortando o pneu, perdendo outro no choque contra o muro e chorando por ver minhas possibilidades de aventura destruídas. De consolo nada: os tijolos que sobraram deixavam visíveis as folhas secas da árvore da vizinha, já idosa e não um deleite para o olhos, muito menos uma possível rota de fuga. Até que ele veio, aquele homem, visto à poucas horas antes, vestia preto (calças, cuecas, suspensórios... tudo negro), a cara era branca de lábios vermelhos, sorriu um sorriso de animal traiçoeiro – capaz de muito, enquanto zanzava pelos ares com seu monociclo. Invejei-o, mais um pecado nos ombros, desejei apedrejá-lo, até peguei algumas britas. Porém só o espantei com gritos, mostrando meu sorriso desdentado – de animal louco. Mandei-o embora. Observando-o partir, ri a toa. Desde sempre fui homem-animal: mostrando os dentes na defensiva, ofensiva, ostentação e vitória, escondendo-os na tristeza (fazendo os olhos vazarem), decepção, tombos de egocentrismo que fazem a cara bater no chão, compartilhando-os em trocas de carinho, trocando-os por recompensas”.
Acordei, às 3h, com as imagens ainda em minhas retinas, meus dedos segurando pedrinhas imaginárias. Passei a língua entre os dentes, busquei no criado mudo uma garrafa de água. Bebi, saciei-me e liguei para Denise. Alguns toques depois, sua voz sonolenta manifestou-se, parecendo metálica e automática.
- Oi, algo urgente? Outra noite de insônia? - perguntou.
- Não, nada disso. Dormi, até mesmo sonhei, mas...
- Tu andas tomando a medicação?
- Odeio tomar aquelas porcarias.
- Pelo jeito vou te ver amanhã.
- Talvez.
- Inspira e expira.
- Não, Denise. É sério!
- Como das outras vezes? Foi só um pesadelo.
- Não, não! – gritei.
- Das duas uma: ou tu estás surtando ou drogado.
- Já te disse, parei com a maconha faz seis meses.
- E o ácido?
- Nunca usei. Tu devia saber.
- Toma o remédio que eu te receitei, ok? Ouve uma música que tu goste, nada de coisas mundanas, te desliga do mundo.
- Meu pai te paga para tu me escutar, sabia?
- Mas tu precisas te ajudar, quem faz o verdadeiro trabalho de equilíbrio emocional és tu.
- Amanhã, ás 15h, eu vou à consulta.
- Qualquer coisa liga-me.
- Tchau.
Desliguei o telefone antes que ela tivesse tempo para uma resposta. Esperava mais dela, contudo só me servia como entulho (de pensamentos e outras coisas que eu não controlava) nas horas de expediente. Uma grande – e cara – medíocre. Disquei outro número.
- Oi!
- Outra noite dormida em pântanos? – perguntou.
- É, naqueles onde o sol nunca acorda nem dorme, muito menos brilha.
Eu havia chegado no fundo do poço de pedra limada. Despejei todas as palavras sobre as cenas, as quais só eu entendia.
- Sente-se melhor?
- Não sei. Prefiro dizer menos pesado, mais feliz porque tua presença telefônica alimenta meu coração carnívoro, sedento de atenções. Posso te ver amanhã? Às 16h, na praça?
Tenho que desligar antes que o sono passe. – menti.
- Claro. Espera! Tu não tens consulta com a Denise?
- Tenho. Dá tempo. Tchau.
- Tchauzito.
Desliguei o telefone, eram quase 4 da manhã. Virei e revirei-me em vão. Horas mais tarde, após ver os primeiros raios de sol. Levantei, tomei meu banho, passei café, estilo tintura, comi uma banana e um pãozinho com mumu. Distribui bons dias, bocejos e gestos, fechado, armado para não aparentar. Dissimulado, sem olhos oblíquos, muito menos cigano, raramente ressacados, porém sempre carnívoros.
Outro dia, uma Quarta – Feira, de rotina. Eram 15h e, eu estava sentado no divã de Denise, sem sapatos, olhando a janela cuja vista deixa-me com certos anseios. Era o 12º andar, a noite com as luzes tangerina deveria ser esplendido, um céu de estrelas laranjas.
- Me fala de ontem?
- Ontem?
- É!
- Eu te liguei?
- Sim.
- Que horas?
- De madrugada.
- Tomei os remédios. É impossível, aquilo apaga até um elefante.
- Alguma coisa me diz para desconfiar.
- Por quê? Só porque eu sou diagnosticado obsessivo compulsivo não raivoso com dificuldades de me relacionar, com tendência a desenvolver esquizofrenia? Só porque eu só me relaciono com quem eu vejo certa graça! O normal maquinal não me interessa. Com tantas características de ganhador de mister simpatia, eu posso muito bem ser sonâmbulo.
- Vou confiar.
- Obrigado.
- Tenho um encontro hoje.
- Sério! Ótimo, grande progresso. E em grupo?
- Me relacionando.
- Está fumando um Black, as vezes?
- Se estivesse não te diria.
- Tu estavas indo tão bem.
- Um pouco de sinceridade demais afeta.
- E de consciência?
- Também, mas menos.
- Quando é esse teu encontro?
- Agora, as 16h.
- E a seção?
- Se eu sair, vais mandar internar-me?
- Não, muito menos se for pela janela.
- Tá certo, essa semana compensamos e, tu me constas o meu sonho! – ri.
- Certo, vou falar com teus pais.
- Pode dizer tudo isso, mais alguns ano de convivência pro nosso currículo, né?
- De fato. – sorriu – vai antes que te atrase.
- Tchau. A propósito, nem todas as flores ficam bonitas com a cor da parede e alguns cheiros inibem. Acho que flores do campo são melhores que lírios nesse caso, o vermelho deles combina com tua íris cor-de-terra.
Bati a porta, desci andares. Ganhei a rua e em cinco minutos a praça. Vislumbrei uma silhueta sentada em um banco de madeira. Senti ao lado dela, então minha rotina foi-se aos ares.
Nós sentados no banco da praça, ouvíamos os barulhos de todas as vozes, menos as nossas. Foram alguns segundos com aparência de minutos, até alguém puxar assunto.
- Adoro esse lugar – eu disse.
- Sim, é muito bonito mesmo, pena que é mal conservado.
- Geralmente as pessoas não dão muita atenção àquilo que não possui tanto glamour.
- Que horas são?
- 16h.
- Tu não devias estar na Denise?
- Tive só meia seção. Disse que não lembrava de ter ligado, alegando sonambulismo,por causa daqueles remédios.
- E ela...
- Nada, muito impessoal. Ia confiar em mim.
- Mas só meia hora?
- Aleguei que tinha compromisso.
- Simples assim?
- Exato.
- O sonho não era simples.
- Nem de longe – ri.
- Qual era o problema?
- Nenhum, porém há alguma coisa.
- Como...
- Um só pneu. Um.
- E...
- Com um é impossível andar de bicicleta.
- Não tem como saber se ele ia andar de bicicleta.
- Um não é suficiente.
- Mas para aquele homem devia ser.
- Bom, esse é o ponto. Porque ele é satisfeito com pouco.
- Questões de percepção.
- Um não faz a bicicleta andar.
- Tu estás muito afetado hoje, parece louco.
- Não sou louco.
- Antes de aceitar, primeiro se nega. Vais negar a Denise, os remédios, os sonhos, as insônias...
- Nenhuma nem outra.
- Então!
- Eu vejo diferente.
- Diferente? Ou puro egocentrismo?
- Apenas diferente, eu não quero só ver, quero sentir antes de tudo.
- Exemplifique.
- Tenho algumas condições.
- Acho perigoso negociar com estranhos, mas fala logo. Quais? – riu.
- Nada de linguagem monossilábica e uma chance, até duas.
- Aceito.
- Olha ali aquele casal. Ficam absortos em seus segredos de canto de ouvido, falando poemas repentinos, apimentando-se na briga, mas preste atenção na menina: está impaciente, parecendo sufocada. Mexe os dedos, olha o chão, não o abraça forte, contudo põe as mãos nas pernas ou no peito dele suavemente, parecendo estar afastando-o. Uma tristeza sobe por todos os nervos vendo essa cena, pois ela não sabe como dizer o necessário para o fim, tem medo, paixões apagadas, pouca coragem e muitas desculpas por não sentir mais. Engana a ela mesma, ilude quem a ama.
Mais outro – eu disse apontando uma criança avulsa - a mãe a cuida, mas distraída, conversando com outras mães. Ela e a menina são marcadas pela pobreza, até ai tudo bem, há muitos na mesma situação desgraçada. Note como a criança presta atenção no lanche das outras, tem aquela partezinha do olho esbranquiçada demais, provavelmente está anêmica, sente fome, tristeza e a injustiça de ser mais uma invisível entre milhões de famintos, mesmo assim sorri banguela, diante da oportunidade de andar de balanço.
Mais um trecho da vida doce-azedo.
- Isso faz meu coração parecer oco.
- Todos os corações são ocos.
Peguei suas mãos frias, levando-as até meu peito.
- Fecha os olhos.
Fechou-os.
- As cavidades são preenchidas com sangue, é um pulsar não constante, contudo ritmado, só cessa quando se morre. Ele bate.
Levei minhas mãos até seu rosto.
- A diferença: no nosso automático os olhos veem e só. Mas, não só os olhos que veem e sentem, todo o resto também. Se tu acreditar, por cinco minutos, na minha insanidade e transforma-la em sanidade, terá todo o mundo, não só uma parte.
Abriu os olhos.
- Louco.
- Apenas acho que uma roda não faz uma bicicleta andar.
Piscava, piscava. Absorvendo tudo, como se procurasse alguma coisa.
- Isso te basta? – perguntou-me.
- Uma questão de percepção. Eu me importo, portanto reparo.
- Sim ou não?
- Sim, não...
- Entendo.
- Quanto?
- O suficiente para saber que uma roda não faz uma bicicleta andar, mas um monociclo talvez.
- Já volto.
Saí, comprei um saquinho de bala toffee, já que achei que seria propício.
- Desculpa, não tinha azedinhas, só toffee. Quer?
- Não.
- Meus cinco minutos acabaram?
- Não sei... Limpa esses dentes, todas as bala fico aí.
Sorri, deixando os caramelos enfeitarem meus dentes.
- Me dá isso!
Num rápido puxão, pegou o saquinho de minhas mãos. Levantou-se rápido, hesitando no meio do caminho de areia, decorado por brinquedos enferrujados e árvores antigas, por fim chegando ao seu objetivo: a menina a qual mencionei minutos atrás. Estendeu as balas, disse que eram um presente. Deu um beijo na face suada. Voltou, sentando-se ao meu lado.
- Impulsivo. – brinquei.
- Louco.
- O sanatório nos espera – ri.
- Vou embora.
- Não vais te perder?
- Tem ônibus para o hospício na parada. – escarnou.
- Por hoje acho melhor ir para casa.
- Também.
- Vê se dorme bem.
- E se eu sonhar com o pneu?
- Duvido.
- Pois?
- O mistério te basta.
- ãhn?
- Não importa o que ele faça, desde que faça e lhe seja suficiente. Cada um tem o direito de viver a sua própria insanidade.
- Alguma diferença?
- O neutro inexiste. Quando levanto as mãos ao céu, tento pegar nuvens, as quais não parecem tão distantes, quase atingíveis, são algodão. Tomam formas quaisquer. É só imaginar, sentir o possível dentro do impossível.
-Sem limites?
- Claro.
- E se um dia...
- Eu pegá-las? Levo-as para o hospício.
- Tchau.
- Até mais, me liga?
- Quando der.
O corpo sumiu na praça velha, deixando-me sozinho com nuvens, um casal rompido e uma criança entupida. O pôr-do-sol arroxeado deixava em evidência o esvair do dia. Naquela noite, tive insônia.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Ciano

Tu na minha frente, do lado oposto, na mesa revestida de veludo vermelho. Esperavas meu último movimento, a cartada. Satisfiz teu desejo, por sinal, o meu também. Larguei os naipes vermelhos e pretos devagar, mas isso não era o suficiente para não ouvir os ruídos (fortes sons, naquele instante) das cartas chocando-se contra a superfície, deixando livre meus dedos tortos. Era 30 de fevereiro, as doses de cianeto desciam pelas gargantas roucas, só via os reflexos da tua íris de cor estranha.
Pupilas dilatadas, tuas cartas revelam-se, caindo leves. Tu venceste, eu perdi. Já havia perdidos as contas de quantas vezes, azares de quem se arrisca. Meus dedos ao léu, Nada mais a fazer, diante daquela neblina, da rua de nossos caminhos, que fazia parecer um eclipse imaginário de luzes néon, ainda tinha algumas moedas nos bolsos, prevenção de que quem, há muito tempo, foi ferido e calejado.
Cianeto demais na garganta, ciano demais no céu da parede arroxeada.
Movimentos bruscos, eu podia ver a tua imagem: indo à direção do ponto cardeal oposto ao meu, tuas costas de frente para mim, permitia-me ver teu terceiro olho – que tu abrias, a fim de as proteger de quem as golpeava. Fiquei inerte, perdedor. Rei dos condenados, desafortunados. Naqueles instantes onde os azuis se fazem roxos, depois pretos na noite, em minha fantasia, de lua nova.
Cianeto de menos nas cordas roucas. Ciano de menos nas íris oculares ausentes.
Isso era diferente, mais que blefe, eram meus sentidos. Eu te via no escuro, teus sinais, impossíveis de não perceber, mas, é assim, alguém tem que perder, te perder. Ao menos, apostar para saber. Agilizando meus dedos tortos, embaralhei meu baralho surrado, mais uma vez em milhares, enfim: cartadas dadas, marcadas ou não, são jogadas mortas. Na impossibilidade da vitória perpétua, a derrota veio bater em minha porta: levando muito, deixando-me mudo.
Cianeto fala, ciano cala
Cianeto alucina, ciano metamorfiza.
Cianeto ciano humaniza.
Agucei os sentidos, através da ausência de outro. Mais uma pupila dilatada, meu terceiro olho – agora aberto – estava seco. Capaz de ver os vidros, teu outro olho sem tremer, por causa das intensidades e tempestades que só os olhos têm. Eu: ferido, calejado, acostumado com o azar, prefiro os desertos. Tu: lisa, afortunada, habituada com os riscos, prefere os dilúvios, é a rainha das minhas tempestades, nos meus desertos onde quase nunca chove.
Cianeto entorpece, ciano entristece.
Sentou-se o próximo, mais um adversário comum, no jogar das minhas ventanias de areia, tinha íris cor de terra, palavras de amador, mas não se comparava a ti; mesmo em pontos cardeais opostos, no veludo vermelho agora manchado de cianeto.
Ciano, a tua cor, nos olhos de tempestade.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Decidi apegar-me as primeiras ideias, antes que a meia noite chegasse e transfigurasse tudo em abóboras, eu não derretesse ou a lua cheia virasse nova.

Meio de tarde de fevereiro, no hemisfério sul, eu não sabia as coordenadas geográficas (talvez bem perto de um lugar bem quente, mas não o inferno – isso era extremo demais). Alguns roncavam estirados nas redes, jogavam jogos de azar com cartas marcadas, uma perdida  rodopiava – ouvindo um Janis imaginária – parecia um festival hippie, quase uma rave, ao contrário: era apenas pessoas felizes depois de um churrasco de sábado. Todos sobre os efeitos colaterais de algumas substâncias variáveis, mas eu só tinha tomado água, era movido pelo vício: mangas, pois bem, cada louco com sua mania ou buscador de alguma substância estranha que substitua a dor no coração.
Se não fosse por algumas árvores, teria dito que aquilo tudo era sertão ou terras do sem fim, mas o verde falava contra, as libélulas tiravam de jogo as teorias de que tudo era um grande forno de assar bolos achocolatados. Uma piscina de mil litros viria bem a calhar, ao menos para afagar a garganta seca carente de fruta tropical, diante das vontades era impossível fugir da fixação. Nada pode realmente proteger daquilo que realmente se quer.
Então, fiquei perante o porquinho de porcelana rosa, martelo em mãos. A sua cara feliz, despreocupada e meiga pintada dava-me pena de esfacelá-la, através de batidas nem um pouco suaves. Era a vida. Uma, duas, três batidas. Agora a face do porquito era cacos, feia e caolha. Coitado, morto por causa de um fruto carnoso, contudo, a principio, minhas moedas aqueceriam às economias mundiais, entrando em circulação.
Fui ao boteco, os infra vermelhos e violetas a pino, sem guarda sol, mais um simples filho do Brasil, passando pelas veredas não calçadas – não esperava mais do que isso, tendo em vista o lugar que vivo: em todas as bocas a desesperança de soluções, só desilusões, onde a lei da selva rei absoluta de forma, aparentemente, não natural , ou seja, ia conforme os andantes da massa humana despreocupada. Eu fazia parte disso, logo tinha certeza:  aqui onde o céu é multicolor, dispor-se a rir dos absurdos é essencial, protetor solar também.
Queria comprar mangas (quem precisa de sorvete no verão, quando se tem manga?), então direcionei meus músculos, articulações e afins, rumo ao mercadinho mais próximo. O calor era imenso, derretendo balas, atiçando moscas e mosquitos os quais faziam festa com a exposição corporal, trazida pelos primeiros meses do ano, transformando tudo em um grande açougue de olhos humanos famintos e insetos sedentos. Caminhava pela cena, mas estava não a tocava, mas reparava: ela estava longe de ser uma abstração.
Tudo junto e misturado! Uma velha passava com um homem em seu carro  (neto ou gigolô?); meninas caminhavam praticamente com a bunda à mostra – graças às manias de roupa extra curta – botando para fora seus hormônios, estava perto da vulgaridade, mas, ao menos, graças a deus ao perfeito impossível da revista da banca; outro cara, sentado no meio fio, esperava a recepção de mercadorias; alguns perdidos riam; cachorros e gatos a sombra de arbustos descansavam. Cada um deles tinha uma história relativa, mas todos andavam com suas correntes invisíveis (vícios, obrigações, visões distorcidas...), tudo sutilmente ácido, a ponto de não ser sentido a flor da pele.
Impulsionado pelos vícios e desejos – motores infalíveis – consegui chegar ao barzinho, lá logo depois da lomba  esquecida ao lado de um salão de beleza, onde se contava os que passavam na rua, matei milhares de mosquitos pelo caminho, uma caminha olímpica contra as forças da natureza, antropológicas . Entrei no estabelecimento,suspirei fundo, estava com refluxo, era urgente! Me consumia. Fui direto à prateleira das frutas e verduras, esquecendo do pão e da cerveja, já que circo não existia. Tudo murcho, passado ou maduro demais. Mexendo a cabeça em todas as direções possíveis, procurando... Meio transtornado abordei um homem:
- Com licença, tu tens mangas?
- Ãhn? Quê?
- Tu tens mangas?
- Hm, dá pra falar de novo?
- Seguinte, mano, tu tem umas manga ai, sabe? Aquelas grandes meio rosa, amarelo e verde. Tá ligado? – respirou fundo, agora sabia que havia falado num dialeto compreensível.
- Beleza. Não tem.
- Nonada! Não creio.
- Nona.. o quê?
- Ah energúmeno! Tem certeza?
- Isso tem haver com energético né? Perae que eu vou te trazer um! Prefere Burn ou Red Bull? – Foi-se embora para o estoque.
É eu estava precisando de asas (fuga rápida e fresca) daquele lugar, mas não sem nada nas mãos. Comecei a vagar por prateleira com todos os tipos de produtos engordurados (dos hidrogenados ao cis-trans); misturas prontas; um açougue real; cacau e café. Aqueles rótulos davam-me medo, pois não sabia pronunciar corretamente extrato de betametacoisinina-74 modificada. Enfim, se tens coragem: come.  Acabei voltando ao mesmo lugar, olhando as frutas murchas. Bananas, laranjas, limões, ameixas, cáquis, uvas, melões, outras infinidades, lutando contra a abstinência – já não possuía mais esmalte – então, se tens forças, defende-te. Se nada, aceita: sujeita-te, morde os dentes na bochecha. Se queres caminha adiante. Seguindo ao contrário toda minha linha de lógica de autopreservação, fiquei estático.
Até que o atendente veio com o Red Bull. Olhei, perguntei:
- Sugar Free?
- Que é isso?
Respirei, expirei. Calma, ele não é obrigado a saber inglês, muito menos falar que nem erudito nessa merda onde ninguém fala direito.
- O azul clarinho, sabe?
- Ah, tá! É esse aí. – sorriu.
A culpa era minha, quase sempre, é melhor utilizar a simplicidade, senso comum nesses casos, afinal culturas, linguagens, hábitos variam conforme os lugares. Dei o dinheiro para ele (não havia caixa registradora), ele foi para dentro anotar no caderninho. Eu, meio lunático, sai portas a fora, ganhando o sol. Uns berros atrás de mim, tiraram-me dos devaneios.
- Mano, teu troco.
Assassino de português, porém honesto.
- Obrigada, mesmo.
- Por nada.
Observei, ele foi voltando com passo gingado, típico malandro e, eu voltei sem mangas, sugar free, sobre nuvens de insetos – sem asas, contudo se tens esperanças: segue até a próxima quitanda, indo de acordo com os passos da massa, o corpo, a mente virando sol. Chuva? Não. Piscina de mil litros? Também não. O vício corroia tal qual ácido, ardendo que nem úlcera.
Rumando ao objetivo seguinte, a aventura continuava. Na quitanda da esquina haveria mangas, a minha substância estranha que me arrancasse uma parte. Sem escolhas! Se vives: segue em frente, enfrenta-te, aguenta.

"Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto. "
 
- Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)