sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Sentei na cadeira, resolvi crias algumas raízes, para não sair daqui antes que a impaciência de uma falta de criatividade ou de algum pedaço de texto afugentasse-me e, pessoa alguma (in)conscientemente distraísse-me. Torço para essas coisas não acontecerem antes do último ponto final e que as paciências não se percam nesses caminhos de introduções. 

Escutei um tango improvisado tocar, olhei pela janela do ônibus (naquele tempo era setembro): um senhor de barba branca por fazer, boina e sapatos marrons, com um copo de cerveja choca junto a ele, uma simples, porém inútil decoração, comparado às luzes baixas e avermelhadas do bar. Enquanto eu seguia (senti vontade de pedir um tango de Gardel), distanciava-me. E, por fim, ele ficou para trás. Um vulto de comprovação da felicidade em uma música improvisada, bebida choca e mesinhas de plástico vermelhas.
Passei os dedos pela boca, antigo hábito de quem roía as unhas, até ficar apenas com as pontas encostando no lábios. Meus olhos não conseguiam descansar, piscam devagar, era como se absorvessem todas as coisas da volta: alguns semáforos, ora verdes ora vermelho, quase nunca amarelos; pessoas de vida como a minha  - as quais descem e sobem ruas, dormem em realidade e se machucam no sonho, ou vivos, ou fingindo viver num universo paralelo próprio caído na desgraça de parecer todos os dias iguais.  Meus olhos iam virando caleidoscópio, cada vez mais, e eu continuava indo, indo, cada vez mais para perto de casa.
Os minutos, as pessoas passaram e fizeram tudo aquilo no qual pessoas fazem nos ônibus. Puxaram a cordinha, como eu, sentiam frio, como eu, estranheza dos bafos quentes que viravam fumaça no inverno, se olhavam no espelho, mas eles não eram eu. Alguns são melhores, alguns não dão bola, outros muito piores, alguns nem valem qualquer citação. Eu era. De repente não era mais. Agora era tarde demais para filosofia barata, eu deixava para trás a cordinha, o dia, o tango, e um pouquinho da sola do meu sapato pelo chão, tanto fazia, era caleidoscopia dos olhos se espalhando pelos dedos, pelos cílios, pelos, unhas carmim, cabelos, pelo isqueiro acendido por mim na cozinha horas mais tarde. Cheguei aos momentos finais de conclusões de vai ou racha, outra coisa de cotidiano, pois: ou tu deixas vir, o que quer que seja, abrindo os braços mais e mais, para que caiba tudo: do antes, do agora e do depois ou te fechas com os braços em x, porque não caberá nada além dos ombros e, os pesos, por eles carregados.
Eu decidi. 
Abri os olhos, os braços, os meus corações e cada parte da minha carne e alma, tudo corroía minhas veias.  Era tão simples. Recebi tudo que me faltava, fiquei até com muito a mais. Permiti, porque se não for intenso e vivo, uma chama no meio da minha carcaça de racionalidades, não é nada.  Nada.


Um livro que li recentemente, deixo um trecho (achei ótimo, ri demais). 

 
Preâmbulo às instruções para dar corda no relógio
Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra-pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você — eles não sabem, o terrível é que não sabem — dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrines das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.
Instruções para dar corda no relógio
Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o
bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que
pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.
- Julio Cortázar - Histórias de Cronópios e de famas. (Manual de Instruções)




Nenhum comentário:

Postar um comentário