sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

cena fragmentada em um cotidiano de ventania


Aquilo não era mais do que uma cena fragmentada em um cotidiano de ventania. Uma borboleta negra (ou mariposa em plena luz do dia?) passou, tocando a unha colorida, antenas com as pálpebras e, logo depois, seguindo sua corrida contra as correntes do ar, sem deixar rastros, em busca de opções. Eu permaneci ali, pensando em itens avulsos, olhando as unhas vermelho-pimenta, pois, às vezes, raciocinar em linhas retas ou tortas doía da mesma forma e voar contra a corrente exigia sacrifícios. Então fiquei sentada, enquanto o vento emaranhava os cabelos e, todos os meus desejos, vontades e possibilidades exigiam de mim atitudes mais concretas, quem sabe até um pouco mais de humanidade.
Será que minha vontade era tão grande a ponto de conseguir alguma coisa, não avulsa, com motivos, sem data de fabricação ou validação, na medida da loucura lúcida, para vencer minhas batalhas - onde o maior inimigo sou eu? Essa resposta tem muitas possibilidades, uma certeza: alguém vai sair ferido. Assim, prático.
Deveria, mas, por coisas que a minha vã filosofia desconhece ou egocentrismo a flor da pele, alguma parte escondida faz eu achar que dá sempre para salvar até o pior dos enforcados, fazer uma história diferente, só para fugir do usual. A perna balança, os dedos entrecruzam-se em notas sol de quarto decrescente aumentando a impaciência,dilatando as feridas abertas, tornando cinza chumbo os flash-blacks, de sépia, da retina. O ritmo do corpo misturou-se com a campainha do telefone, deixei uns segundos o som horrível entrar pelos tímpanos, o sangue subir a cabeça. A cena fragmentada, agora, tinha início, meio e final.
- Fala.
Não falei, botei os pulmões para fora. Até demais. O batom se fora, com a saliva. Naquele dia preferi o escracho à sutileza.
Melhor isso que a indiferença, olhos nos olhos, batalhas corpo a corpo, mortos e feridos. Éramos apenas soldados que deixaram de lutar, vencidos pelo cansaço, velhas fórmulas, embora seja impossível mascarar as verdadeiras essências – não importa os perfumes usados. Sentimos os pesos dos sete pecados os quais carregávamos de arrasto, dos tatos ásperos, distâncias dos nossos caminhos paralelos. E diante disso: calamo-nos, aparecendo como demônios nos pensamentos alheios.
Uma lágrima escorreu, tornando-se gota d’água benta. Demônios exorcizados, nenhum morto, contudo vários feridos. Final de guerra (sem mortes), uma borboleta que fugiu, assuntos acabados, outros recém postos em evidência. Sendo assim, não tive tempo de dizer adeus (nunca há), ele desligou antes, resultado de uma epifania? Não. Mais um romance de horas, desejos de minutos, luxúrias de segundos, ao menos tudo pleno e intenso.
Ao menos uma cena digna de novela mexicana, encaixada em um cotidiano de ventania.


“Porque naquelas casas, se o acolhiam, se lhe davam comida e dormida, era como cumprindo uma obrigação fastidiosa. Os donos da casa evitavam se aproximar dele, e o deixavam na sua sujeira, nunca tinham uma palavra boa para ele. (...) Mas desta vez estava sendo diferente. Desta vez não o deixaram na cozinha com seus molambos, não o puseram a dormir no quintal. Deram-lhe roupa, um quarto, comida na sala de jantar. (...) Então os lábios de Sem-Pernas se descerraram e ele soluçou, chorou muito encostado ao peito de sua mãe. E enquanto a abraçava e se deixava beijar, soluçava porque a ia abandonar e, mais que isso, a ia roubar. E ela talvez nunca soubesse que o Sem-Pernas sentia que ia furtar a si próprio também.” Jorge Amado, Capitães da Areia.

amei, cacete.




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