quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Areais do concreto

Olhava o nada, o céu das quatro horas, teoricamente menos propício às temperaturas fortes, deixava todas as sensações mais acentuadas, mas não as sentia, imune ao caos. Todas as vozes pareciam longe e híbridas (misturadas umas com as outras) e, todos os atos óbvios – como um castelo de cartas que desaba. Tão óbvios assim?
- Pegadas na areia? – perguntou o homem meio doido e encardido (aquele corpo já não via água fazia algum tempo), mostrando um cartão o qual tinha essa respectiva história. Arregalou os olhos, saindo do seu buraco negro:
- Não, obrigado.
O corpo encardido foi interrogar mais alguns, saindo da sua vista, desviando de quem não fazia parte das suas escolhas aleatórias. O observador sorriu de canto de boca. Agora já não era questão de poesia, muito menos metáfora, e sim da realidade – outra história que se repetia (mais um cavaleiro da chuva?) na insônia da noite anterior? Tudo conspirava para isso, mas era muito mais. Questões indecifráveis de fé. Levou os dedos levemente até a boca, demonstrava uma surpresa contida, os olhos brilhavam, escondidos pelas lentes escuras, desabou num suspiro de esperanças, pois era disso que precisava: um pouco de desconhecido, sua gênesis, seu êxodo, já que no concreto não se deixam pegadas, só resto de sombras. Sim ou não? Dúvida. Céu ou purgatório sobre sua cabeça? Areal ou mar de concreto? Isso era inegável: mar de concreto, em tempos de seca.
A garrafa de água caiu aberta, dando de beber ao asfalto, pingos voaram para todos os lados, molhando pés, insuficientes para acalmar os ânimos, porque evaporavam antes de solucionar os problemas dos corações alheios. Eles acabaram gerando algumas reclamações dos insensíveis e a indiferença dos distantes, mas nele só trouxeram indignação e mais dúvida.
- Tá tudo certo?
Queria dizer que não; contudo, como qualquer ser humano, o instinto de negação das fraquezas gritou e, na falta de criatividade para desculpas aceitáveis, veio uma resposta:
- Cansaço.
- Todo mundo tá assim, deve ser esse calor infernal. Quer um pouco do sorvete?
Recusou a baba gordurosa quente, extremamente decadente. A sensação de fraco, o resto em câmera lenta, sorvete derretido e sua crença em si mesmo colocada à prova, isso não era Gênesis ou Êxodo, era o Apocalipse, talvez um conto da Clarice Linspector se materializando nos arcanos do destino. Mais pensamentos dúbios, visões transparentes do presente e imaginações das linhas do futuro (inúteis) nas linhas dos areais de concreto.
- Tem certeza? Esse chocolate tá perfeito. Relaxa, fica tranqüilo. Vai dar tudo certo.
- Não, não. To mesmo é com vontade de tomar um café. – não confessou que também um cigarro, vodca com sprite e gelo seria ótimo, mas teve medo das reações.
Ouviu aquelas palavras a semana inteira, se bem que não há como não repetir palavras. Repetir. Lembrou-se dos velhos trechos: “se tua fé não alcanças e chegas a duvidar, não enxergas a verdade? Esqueceste. Não é a toa que caminhas por este caos. A primeira guerra passou, a segunda guerra passou, mas a terceira já foi escrita...”, “Não tentaste qualquer viagem.Não possuis casa, navio, terra, mas tens um cão. Algumas palavras duras,em voz mansa, te golpearam. Nunca, nunca curam. A injustiça não se resolve.À sombra do mundo errado, murmuras te um protesto tímido, mas virão outros”, “O milagre não é dar vida ao corpo extinto,ou luz ao cego,ou eloqüência ao mudo... Nem mudar água pura em vinho tinto... Milagre é acreditarem nisso tudo!”
- Loucura! Tomar café nesse calor.
- Pior é comer um cachorro quente da carrocinha. E vícios são vícios, é difícil negá-los.
- Certas coisas não se explicam.
- Felizes os que creem e não veem.
- Tu tá muito estressado.
Repetir, outra vez.
Quem sabe outra só para ter certeza da descrença. Será? Vacilou. A areia do concreto era dura, seguiu os demais rumo ao ônibus, deixando suas pegadas de sombra no concreto, não as seguiram, mas qual a importância? Tinha asas, embora não as visse. Eram de água, mudavam de cor constantemente, escorriam pelo ar, na hora do voo. Muito realismo fantástico, na sua fé.
Sentou no banco duro, sol sobre o rosto. Colocou a cabeça na janela, olhando a paisagem de concreto virando água de areia, murmurou palavras inalteradas e fingiu dormir. Passados 40 minutos, desceu do ônibus, seguiu o caminho até em casa. Chegando lá, tirou os tênis, mexeu com a pedra do isqueiro (como se fosse ascender um Black imaginário). Deu-se a combustão do gás butano, enfim, a água ferveu. Passou um café muito forte, colorido de preto, tomou um gole. Um fim de tarde amargo.
Esticou o braço, umas gotas de adoçante despejou na xícara. Tão amargo assim?

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