terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Saiu do banho gelado, mas a pele estava lisa e quente como uma cobra recém saída do sol. Essa sensação não lhe era incomum, pois estava acostumada com aquela condição. Da janela via o azul de petróleo virar turquesa anil, o espectro de luz fazia fragmentava as cores do copo, já vazio, trazendo imagens, meras miragens, acabando por mostrar, de forma embasada, o futuro. Ela vendo o futuro. Certamente, aquela visão não era aquilo que quiz, principalmente naquele ambiente sem luz elétrica presente (somente a da janela), cheiro de mirra e cortinas de chita; todavia, diante da insonia: qualquer coisa valia, nas tentativas de sobreviver.
Fez as coisas do cotidiano, vestiu a blusa de seda negra, pôs seus anéis, pulseiras e o manto invisível de perfume, estava quase pronta. Ensaiou um sotaque francês, sorriu. A maquiagem lhe trazia uma aura mística e lasciva e, esse efeito era o que desejava. Outro sorriso, fechou a porta silenciosamente. Era muito cedo quando ganhou a rua, os cães vadios vagavam e, as igrejas, mais vazias do que de costume, pareciam arder no inferno diante de tantas velas oferecidas aos santos naquele final de ano, apenas outras formas de negociar o amanhã, sem pensar nas atitudes de agora.
Deus, me ilumina como uma vela na escuridão para que eu consiga fazer o necessário, pensou. Seguiu adiante - enquanto, as ceras terminavam e extinguiam-se, agora só restos carbonizados de pedidos entregues ao além -, brilho do seu olhar seguiu incandescente. Não era certo deixar nas mãos do invisível, nem parecia viável, ao mesmo tempo, negá-lo parecia impossível. Afinal, fazia tempo que vira seu caminhos, sempre acabou vendo o futuro, seja nas cartas, nos rastros,mãos, nos olhares perdidos dos que vinham procurar respostas ou as cores do espectro. Naquelas situações, era tudo como uma costura, ia tecendo, desvendando os processos, como não sabia. Fizera de sua maldição o seu trabalho, sua obrigação, sem ela nada seria, a sobrevivência. Vendendo o futuro, sobrevivia, acendendo ou carbonizando esperanças, pisando em falso no invisível.
Chegou no seu escritório (se é que se pode chamar assim), disse bom dia à secretária. A primeira consulta seria por volta das 7h:30min com uma moça. Com certeza não demoraria a chegar, muito mais atraída pelo receio e sensações de aventura daquilo que a cartomante lhe falaria, perguntaria de seus amores, profissão, familia, quando morreria, os clássicos de sempre, sempre as mesmas questões só mudando as palavras e o enfoque, logo as iguais ilusões, ambições e tragédias; sugando-a por respostas que esta não pode dar e, ainda, pode errar, afinal, se os horizontes do hoje são metamorfoses, os de amanhã são resultados. Quando iriam entender? As pessoas costumam ser bastante omissas, pensou.
A moça entrou no cômodo, ambas trocaram algumas palavras. Os arcanos diziam muito, mas a outra preferiu não dizer tudo, pois, as vezes, é melhor não saber. Acabou  por deixar a menina curiosa. Então, como resposta às questões: - não há mais nada além? Disse: - Isso descobrirás, contudo acredite, as coisas que virão conseguirás enfrentar.
A moça saiu satisfeita, a cartomante ficou sentada, remoendo-se por ter tido algo tão óbvio e de quinta categoria, fez o necessário, nada mais; embora, não tenha visto nada dessa vez. Estava se perdendo, carbonizando lentamente. Os dons atrofiados, como previra nas luzes do copo. Vendo, vendendo, sobrevivendo, incandescendo, omitindo de si mesma seu futuro.

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