terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Ciano

Tu na minha frente, do lado oposto, na mesa revestida de veludo vermelho. Esperavas meu último movimento, a cartada. Satisfiz teu desejo, por sinal, o meu também. Larguei os naipes vermelhos e pretos devagar, mas isso não era o suficiente para não ouvir os ruídos (fortes sons, naquele instante) das cartas chocando-se contra a superfície, deixando livre meus dedos tortos. Era 30 de fevereiro, as doses de cianeto desciam pelas gargantas roucas, só via os reflexos da tua íris de cor estranha.
Pupilas dilatadas, tuas cartas revelam-se, caindo leves. Tu venceste, eu perdi. Já havia perdidos as contas de quantas vezes, azares de quem se arrisca. Meus dedos ao léu, Nada mais a fazer, diante daquela neblina, da rua de nossos caminhos, que fazia parecer um eclipse imaginário de luzes néon, ainda tinha algumas moedas nos bolsos, prevenção de que quem, há muito tempo, foi ferido e calejado.
Cianeto demais na garganta, ciano demais no céu da parede arroxeada.
Movimentos bruscos, eu podia ver a tua imagem: indo à direção do ponto cardeal oposto ao meu, tuas costas de frente para mim, permitia-me ver teu terceiro olho – que tu abrias, a fim de as proteger de quem as golpeava. Fiquei inerte, perdedor. Rei dos condenados, desafortunados. Naqueles instantes onde os azuis se fazem roxos, depois pretos na noite, em minha fantasia, de lua nova.
Cianeto de menos nas cordas roucas. Ciano de menos nas íris oculares ausentes.
Isso era diferente, mais que blefe, eram meus sentidos. Eu te via no escuro, teus sinais, impossíveis de não perceber, mas, é assim, alguém tem que perder, te perder. Ao menos, apostar para saber. Agilizando meus dedos tortos, embaralhei meu baralho surrado, mais uma vez em milhares, enfim: cartadas dadas, marcadas ou não, são jogadas mortas. Na impossibilidade da vitória perpétua, a derrota veio bater em minha porta: levando muito, deixando-me mudo.
Cianeto fala, ciano cala
Cianeto alucina, ciano metamorfiza.
Cianeto ciano humaniza.
Agucei os sentidos, através da ausência de outro. Mais uma pupila dilatada, meu terceiro olho – agora aberto – estava seco. Capaz de ver os vidros, teu outro olho sem tremer, por causa das intensidades e tempestades que só os olhos têm. Eu: ferido, calejado, acostumado com o azar, prefiro os desertos. Tu: lisa, afortunada, habituada com os riscos, prefere os dilúvios, é a rainha das minhas tempestades, nos meus desertos onde quase nunca chove.
Cianeto entorpece, ciano entristece.
Sentou-se o próximo, mais um adversário comum, no jogar das minhas ventanias de areia, tinha íris cor de terra, palavras de amador, mas não se comparava a ti; mesmo em pontos cardeais opostos, no veludo vermelho agora manchado de cianeto.
Ciano, a tua cor, nos olhos de tempestade.

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